segunda-feira, julho 16, 2007

Morrer não é nada

Queria ajeitar o lençól com a mão e não conseguia, a mão muito trêmula e sem força pra levantar a dobrinha do lençól. Daí ela começou a gemer, era mais um grito que terminava quando o fôlego acabava e voltava com a respiração de alguém ofegante.

Eu falava com ela, mas ela só queria gritar mesmo, continuamente.
Eu perguntei se tava doendo, se ela queria que eu chamasse alguém, ela fechava os olhos querendo dizer não - minha família nunca vai acreditar mas eu sei quando ela quer dizer sim ou não. Eu perguntei se ela queria alguma coisa das enfermeiras, insisti, disse que ia chamar alguém, ela disse que não.

Ela gritava com a voz que já é tão fraca que nem se percebe muito - lembrei de um pesadelo que sempre tenho, quero me virar na cama e não consigo, e aí tento gritar pra acordar a mim mesma e me mexer, mas a voz não sai e fico paralizada.

Me acalmei, respirei fundo e olhei bem nos olhos dela pra tentar entender e percebi, era medo.
Então eu perguntei “você tá com medo?“ e ela deu um aceno com a cabeça, bem grande, com um resto de forças.
E eu sem saber o que dizer, disse que não precisava ter medo, que ia ficar tudo bem, e fiquei repetindo, abraçando ela do jeito que podia...

O corpo dela quase já não existe. A impressão que dá é que ela vai voltar a ser um feto, as pernas sempre dobradas, ela não se estica mais. Passei a mão na cabeça dela até ela se acalmar.

No final, contei que minha cadela tinha comido o guarda-chuva e eu sem perceber saí com ele e só saquei que ele tava comido depois que abrir e vi os furos na rua quando precisei dele. Ela sorriu e balbuciou um “só podia ser contigo!“ e eu sorri também. Quando o sorriso foi embora eu falei que ia esfriar e que precisava ir pra casa, e precisava mesmo. Precisava chorar muito, as lágrimas escorriam lá, mas eu ainda sorria e ela sorria de volta.

Agradeci as enfermeiras que estavam por lá e uma delas disse “vai com deus“ e uma fúria me veio... Que Deus é esse que quer que ela viva assim? Porque podemos sacrificar animais com doenças terminais mas os humanos, com consciência, têm que ficar sofrendo? Aquilo é um depósito de restos humanos.

Lá fora, chorei mais do que caía água do céu. Fiquei em baixo do meu guarda-chuva furado olhando as roseiras do jardim entre as águas...

1 Comments:

Blogger Projeto Miolo Mole said...

qdo minha bisavó morreu com 98 anos eu não fui ao velório, nem ao enterro, eu só agradeci e as pessoas nunca vão entender porque eu fiquei feliz e alivida, as pessoas só sabem ser egoístas...

7/17/2007 3:47 PM  

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