segunda-feira, outubro 08, 2007

Sábado, a Nina Horta sentou na mesa do lado no boteco onde eu estava tomando cerveja.
Eu fiquei em frenezi. A Nina Horta sentada do meu lado contando histórias da cozinha da casa da mãe dela na Barra da Tijuca quando a Barra da Tijuca não tinha nenhum prédio. Fiquei louca, queria muito poder ouvir aquela conversa de perto e perguntar coisas e entender direito o que ela disse sobre cozidos de carne - da mesa do lado eu sapeava algumas coisas, mas claro que perdi muitas.

Que coisa, essa cozinheira que eu admiro tanto tão perto e tão longe.
Eu disse: quero ser ela quando crescer.
Os meninos tentaram me encorajar a uma aproximação.
Eu pensei no caso, mas daí lembrei das pessoas que se formaram em gastronomia no ano passado, são sete mil ao todo só na cidade de São Paulo. Deu medo de ser mais uma intrusa chata na noite de sábado dela. Imaginei quantas pessoas chegam nela por dia pra conseguir um contato pra galgar mais um degrau na vida...
Desisti.

Domingo fui trabalhar, enquanto esperava a cebola fritar na frigideira pro recheio da massa, eu peguei umas abobrinhas pra picar pro cous cous. Estou entretida mexendo minha frigideira e picando minhas abobrinhas quando a garota nova pára ao meu lado e diz com um entusiasmo estranho: Brunoise!
Não sei o que ela esperava, falou com uma ênfase de quem encontra um amigo de infância na rua. Fiquei imaginando se ela queria que a abobrinha respondesse: Mayra, quanto tempo!

Só sei que a garota é aluna do curso de gastronomia da Unicsul - seja lá o que isso for. Pelo que vejo, em dois anos de curso os alunos devem ser apresentados pra algumas técnicas pra ficar por aí falando o nome delas, e depois vão “trabalhar“ ganhando o mesmo que eu.

No final do dia tomamos cerveja, logo cedo as mulheres foram embora - graças!
Eu não aguentava mais ter que ser educada com aquela conversinha sobre tratamentos de cabelo - porque será que as mulheres se sentem confortáveis de vir falar sobre esses assuntos comigo? Acho que vou raspar o cabelo.

Ficaram os homens, os cozinheiros e o chef, todos formados em Icif, Anhembi Morumbi, Senac... Gente fina e pós-graduada.
Eu fiquei junto, não perco por nada uma conversa assim, fiquei na esperança de aprender com eles.
Bem, eu aprendi.
Mesmo o cara que tem uma tatuagem com frases sobre o amor dele pela gastronomia é um merda. Todo amor pela gastronomia não passa de saber técnicas e picar rapidamente coisas e saltear em frigideiras enormes com labaredas enormes queimando os cílios pra parecer bom. Sendo que quem faz labaredas é ruim, não é seguro, mas as pessoas se acham muito boas botando fogo nas coisas, é engraçado. Eu fico pensando que a carreira de malabarista pirofágico também serve pra eles, talvez um dia eles mudem.

As conversas sobre chefs mal educados me cansam profundamente então eu tentava falar de gastronomia especificamente, fui enveredando a conversa pra esse lado pra ver que coelho saíria daquela cartola.
Falei das minhas descobertas de barraquinhas e quitutes por aí... Sobre o melhor pastel que já comi que é feito por uma velhinha de quase noventa anos, que é preciso correr pra comer a iguaria, mas ninguém se interessou - vai ver não gostam de pastel. Daí falei sobre o pão chinês e o bolinho de polvo da feirinha da liberdade, sobre a bahiana que atende no porão de casa e que só recebe conhecidos, disse que se eles quisessem eu poderia levá-los. Continuaram sem interesse pelo que eu dizia. Falaram do pão chinês da Itiriki que não tem nem recheio direito, é ruim, e nem se interessaram minimamente em saber onde é a barraquinha com o pão chinês gostoso que eu falei.
Percebi que pra eles tanto faz. Passar pela liberdade e entrar na padaria foi só um acaso, não faz parte deles, eles não amam isso. A gastronomia é um assunto que fica na parte profissional da vida deles e ponto final.
Nenhum coelho.

Estou chocada, muito chocada.
Quando eu trabalhava com nordestinos que acabaram na cozinha por falta de outra oportunidade na vida e que se fizeram bons nisso, era mais legal, porque eu falava de tal boteco e eles iam comigo conhecer, me contavam de outro lugar tal que tem atolado de vaca ótimo. É que pra mim aquilo era limitado, eu queria gente inteligente pra discutir, gente preparada pra me ensinar coisas, trocar.
Hoje eu trabalho com pessoas que escolheram estar ali, que se prepararam pagando fortunas em faculdades e cursos no exterior, mas no final dá quase na mesma.

A conversa de ontem, a certa altura, virou uma espécie de joguinho pra ver quem conhecia mais coisas exóticas - foi ridículo e infelizmente, inevitável.
O chef citou o ovo milenar chinês. Eu nunca comi, Rodrigo sim, disse não ser algo imperdível, então eu nunca me interessei muito, mas sei onde tem na liberdade por conta dele.
Daí perguntei pro chef onde ele comeu o tal ovo milenar, a resposta foi, na faculdade, fizemos na aula de cozinha tradicional chinesa.
O detalhe é que ele dizia que o ovo era enterrado em cinzas e mais um ácido muito forte que ele não se lembrava o nome. Eu achei estranho ser um ácido e perguntei se não era soda cáustica. Ele disse, isso mesmo, soda cáustica, esse ácido!
Então fui obrigada a lhe informar que soda cáustica não é um ácido e sim um alcalino muito forte, é basico, eu disse.
Ele ainda querendo sair por cima disse, não, mas ou é básico ou é alcalino!
E eu tive novamente que informá-lo que básico é o mesmo que alcalino.

Agora preparem-se para a parte alta da noite: cozinheiro formado há cinco anos na Anhembi Morumbi diz que eu deveria me enveredar pelo caminho da cozinha molecular, já que eu tenho tanto conhecimento em química.

Meudeus! Cozinha molecular... pegou no calo.
Eu tive que responder que não me interesso por esquizofrenia.
Ele não entendeu, claro, tive que explicar mais ou menos como age um esquizofrênico, disse que ele perde a capacidade de dicernimento, já não sabe mais o que é azul e o que é amarelo. Isso é mais ou menos o que o pai da tal cozinha molecular (O Ferran Adriá), tão em voga, faz. Constrói ar com sabor e chama de comida. O tal “ar de cenoura“ vem em forma de ar (invisível) numa colher e tem sabor de cenoura. Desde que o mundo é mundo ar se respira, ar nunca foi e nunca será comida, por isso não pode ser preparado numa cozinha, na cozinha se faz comida - esse é apenas um exemplo, se eu ficar aqui escrevendo este post não termina nunca.
Ferran Adriá a parte, a coisa toda que eu queria dizer é que é muito grave chamar isso de comida.
Além do mais, química sempre foi a matéria que eu mais odiei em toda a minha fatídica vida escolar, porém saber o que é ácido e o que é básico é necessário pra vida, foi o que averiguei quando tinha 15 anos e decidi então aprender o beabá da química pra não me tornar uma pessoa tão perdida - essa última parte, eu deveria, mas não falei.

Depois disso eu consegui escapar, minha carona resolveu finalmente ir embora e eu voltei pra casa arrependida de ter ficado bebendo com eles. Depois, constatei que não devo muito pra esses sete mil que se formaram ano passado, e também que não devo muito pra mais outros tantos que se formaram em outros anos. Me pergunto agora porque eu não fui falar com a Nina Horta no Sábado. Provavelmente esses caras nunca viram a cara dela, nunca leram nada dela e ela deve passar ilesa pelas ruas.
E eu perdi a chance de conhecer a cozinheira e cronista que eu tanto admiro.

Se arrependimento matasse eu seria um ovo milenar!

1 Comments:

Blogger Unknown said...

Comi esse ovo milenar ontem e estou enjoado até agora, graças ao ovo encontrei seus contos, muito divertido, sou só mais um dos sete mil, nem sei em que numero está agora, mas até o fim do ano contarão mais um no meio!!
grande abraço
Victor

8/24/2010 10:27 AM  

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