sexta-feira, maio 12, 2006

Há sempre um Kit Frit em uma dimensão paralela mais próxima de você

Quando eu tinha nove anos, perto do meu aniversário lá pelos meados de junho, eu pedi um Kit Frit pra minha mãe. Ela disse que não me daria porque era um brinquedo caro e mandou eu escolher outra coisa de presente de aniversário. Eu disse a ela que faria qualquer coisa pelo brinquedo - “qualquer coisa mãe, por favor, vai?” - então ela decidiu que se eu parasse de roer unhas, no dia das crianças, três meses depois, ela me daria um Kit Frit.
Eu me empenhei na coisa, mordia os cabelos, mastigava papel e ponta de caneta bic na escola pra não roer as unhas que minha mãe cortava com orgulho todo final de semana.

Roer unhas sempre foi tão benéfico pra mim que até hoje pratico com regularidade. Hoje mesmo na volta pra casa, roí todas as unhas, elas já estavam com um branquinho despontando pra fora da carne. Na verdade eu me sinto um pouco mal por roer unhas no ônibus bem depois de segurar no balaústre e pagar dois reais ao cobrador, mas chega a ser algo inevitável, sabe? Prefiro roer unhas a ter uma síncope de ansiedade dentro do ônibus. Melhor comer umas bactérias e tudo bem. Vão-se as unhas, fica a sanidade.

E naquela época eu consegui ficar três meses sem roer unhas usando como artifício outros objetos e minhas próprias cutículas para conquistar meu sonho de consumo, o Kit Frit.
Ganhei um Kit Frit cor de rosa e uma família orgulhosa. Uma tia me deu um estojo de alicates e apetrechos de manicure pra eu cuidar das minhas belas unhas-não-roídas sozinha, "como uma mocinha deve fazer", dizia ela.

Obviamente a maluca da minha mãe não me deixou nem chegar perto do estojo de manicure já que ele era nocivo à minha educação, assim como as Barbies que eu e minha irmã ganhávamos e ela escondia alegando que a tal boneca americana tinha formas femininas e isso faria com que no futuro eu e minha irmã nos tornássemos mulherzinhas frescas e frágeis.

Por esse mesmo motivo ela também me enfiou na aula de judô enquanto eu implorava pra ir às aulas de balé. E todas as meninas da minha idade saiam do colégio e vestiam suas saias de bailarina e sapatilhas enquanto eu colocava um kimono ridículo pra ir apanhar dos meninos na aula de judô. Tinha um menino que sempre puxava meu cabelo na aula e eu resolvi alegar que por isso não voltaria mais lá, meu cabelo era muito comprido e eu ficava em desvantagem quando o professor não estava olhando. Então minha mãe resolveu cortar meu cabelo joãozinho pra evitar mais puxões e eu poder aprender a me defender no tatame e na vida.

Não funcionou.

Enfim, minha vitória foi que eu consegui passar na prova das unhas roídas, ou melhor, das unhas não roídas e ganhei um Kit Frit no dia 12 de setembro, às 10 da manhã de um dia ensolarado.

Todo mundo adorava o Kit Frit, até minhas vizinhas ignoravam minha chatice e vinham brincar. Tinha um botijão de gás cor de rosa que bombeava ar através de uma mangueirinha verde a qual fazia bolinhas no óleo de mentirinha que na verdade era água da frigideira de plástico. Vinha junto umas comidinhas de plástico duro pra se fritar.

Era uma alegria só... Exceto quando minhas “amiguinhas” queriam enfiar alface e tomate pra cozinhar, isso me deixava extremamente contrariada. Oras, qualquer criança, panaca ou não, deveria saber que alface e tomate não se fritam, essas coisas são temperadas e vão na salada! Então eu vetei o Kit Frit, elas nunca mais vieram brincar e eu fiquei feliz brincando sozinha com minha conquista...

Até o dia em que eu não agüentei e voltei a roer unhas. Na verdade não foi bem uma decisão, eu fui cedendo à tentação (um dia um cantinho do indicador, outro dia um cantinho do mindinho - ah, as unhas dos mindinhos são sempre mais gostosas de roer, nunca entendi o porque), no final de semana quando minha mãe me chamou pra cortar as unhas eu já não precisava do alicate dela.

E foi assim que o Kit Frit (meu presente de aniversário e também presente de dia das crianças) foi se juntar com as Barbies e o estojo de manicure. Uma dimensão paralela que eu procuro até hoje em algum armário aqui de casa.