terça-feira, outubro 24, 2006

“O lugar que eu mais gosto neste mundo é a cozinha. Não importa sua localização ou como é construída, desde que seja uma cozinha, um lugar onde se faz comida, me sinto bem. Se possível prefiro cozinhas funcionais e práticas. Com muitos panos de prato secos e limpos e azulejos cintilantes.

Adoro até as cozinhas incrivelmente sujas, com restos de verdura pelo chão - tão sujas que os chinelos ficam logo pretos - e grandes, de um tamanho exagerado. Com uma geladeira enorme cheia de mantimentos que dariam tranquilamente pra um inverno inteiro, uma geladeira imponente, com uma porta em que pudesse me apoiar. E quando levanto os olhos do forninho salpicado de gordura ou das facas meio enferrujadas, lá fora as estrelas brilham tristes.

Ficamos sós, eu e a cozinha. É um pouco melhor do que pensar que fiquei totalmente só.

Nos momentos em que estou exausta, fico divagando. Acho que quando a hora da minha morte chegar, gostaria que fosse na cozinha. Se ela estiver fria e eu só, se ela estiver quente e eu junto a alguém, eu olharia a morte no olho sem medo. Se fosse na cozinha eu diria: 'Que bom.' “


“... Era melhor por mãos à obra. Parecia que a cozinha não era usada há algum tempo. Estava meio suja e empoeirada. Comecei pela limpeza. Esfreguei bem a pia com detergente em pó, limpei o forninho, lavei os pratos, amolei as facas. Lavei todos os panos de prato com alvejante e depois botei tudo na secadora. Enquanto giravam sem cessar, percebi que estava um pouco mais calma. Porque gosto tanto de tudo que tem a ver com cozinha? É estranho. Pra mim a cozinha talvez represente um desejo distante, gravado na memória da alma. De pé no meio da cozinha, tudo parecia recomeçar, e alguma coisa estava de volta.“


“...Eu cozinhava, cozinhava, cozinhava com a energia de um alucinado. Usava na cozinha todo o dinheiro que ganhava com o trabalho de meio expediente. Se errava, tentava de novo até que o prato saísse perfeito. Cozinhando, às vezes eu perdia a paciência, ficava nervosa, mas também me sentia invadida por uma sensação de beatitude.“


“... Levei algum tempo para conseguir cozinhar como se deve omeletes recheadas, pratos de verduras cozidas com aspecto impecável, tempurá. Mas nunca imaginei que um defeito do meu temperamento - não me prendo a detalhes - seria um obstáculo à execução de pratos perfeitos. Fiquei surpresa quando constatei isso: coisas que pareciam sem importância, como não esperar que a temperatura do forno chegasse ao ponto certo, cozer um picadinho sem deixar que evaporasse completamente, e assim por diante, influiam no resultado final. A cor e a aparência dos meus pratos cairiam bem num jantar preparado por uma dona de casa mas não correspondiam às das fotografias coloridas dos livros.

Entendida a lição, me esforcei por fazer tudo da maneira mais correta possível. Enxugava cuidadosamente as vasilhas, recolocava as tampas nos vidros de temperos, examinava com calma e antecedência todos os passos, e quando parecia que estava ficando louca de raiva, parava e respirava fundo. Nos primeiros tempos, a impaciencia fazia com que me sentisse mal, e quando finalmente consegui corrigir todos esses defeitos, pareceu-me que tinha corrigido até meu temperamento. Mas era pura ilusão.“


Kitchen de Banana Yoshimoto.

Se eu me identifiquei?? Não... quase nada...